sábado, 25 de agosto de 2007

Alguns Contos de Réis... De Jaiel de Assis



Extremidade

Começo a narrar este conto, sem ter nas veias, nem na simbale semente do amor proibido, a intenção primeira de dizer coisas coerentes, coisas agradáveis como poesia de balcão com recheios de caramelos e música agradável.

Começo com a frase banal; “era uma vez”. Se era uma vez, a vez ficou perdida, adormecida nesta lama podre que o centro da nação exala com todos os seus odores e madrigais.

Não existia uma cor determinada, o barulho era de tiros, chumbo quente abrindo lascas na carne de um homem marginal.

Vira-latas, seu nome apropriado pelo costume do sobrevivente de resistir a fome, seguida à frente do seu tempo à procura de um esboço de amor, de um prazer fundado em morte, pois todo o goso, orgasmo, sabor de ameixa em leite, sabor qualquer, transita sempre entre a vida e a morte, entre a dor e o prazer.

Amar uma mulher cheirosa, limpa e bela é coisa que qualquer ator, manequim ou prostituto, faria sem maiores problemas estruturais. Mas, praticar este amor mendigo, entre a sujeira íntima das suas partes e o leito podre da rua, é algo que transcende à paixão e ao desejo animal.

Este é o canibalismo das paixões, amor fétido, purulento, realizado pela fome gritante do instinto, rasgando a carne em busca do prazer.

Vira-Latas ama esta mendiga como quem come uma fruta podre. Descobre o novo gosto, o sabor das coisas deterioradas, apodrecidas, matéria em transição.

Nesta etapa que sombreia o capitulo único do conto, deve-se explicar como faria um bom crítico literário, o caráter psicológico dos personagens deste país surrealista.

Vira-Latas é o condenado social que perdeu todos os seus direitos nos sítios da estrutura, das leis e arranjos, nas similitudes sociais. Outrora fizera parte dos “fibras” da côrte, hoje , sem número, sem identificação, é um rato que descobre o lado novo, a casca podre da nação.

Seu filho, no entanto, já nascera na zona podre da cidade e ao contrário do pai que conhecia o bom e o podre, ele conhecia apenas o podre e toda sua caminhada em busca do centro, do coração emplumado da nação, constituía-se na procura do gosto, para ele novo, do fruo natural, não apodrecido.

Tal o estado psicológico desses atores do drama diário da nação enferma e insane.

Andar pela extremidade de nação, enfrentar a fúria do poder armado, conviver com o crime e a dor, ver chagas no lugar de flores, é como mergulhar no abismo intenso, sentir em todo corpo a asfixia de cair eternamente nesse poço sem fundo, sentindo ser dilacerado de encontro as pedras com seu musgo sujo de lodo que sempre reveste esses lugares sórdidos.

Vier na extremidade é viver perigosamente sem ter direito, sem ter cidadania, sem esperança ou qualquer outra palavra que indique segurança, paz ou liberdade.

Meu encontro com Vira-Latas foi algo patético e infame. Coloquei nos meus olhos, em minha face de cidadão do centro, limpo e civilizado, toda a piedade farisaica que pode reunir. Procurei saber qual o código e as ações que possibilitam a vida na extremidade da nação.

Vira-Latas me perscrutou com seu olhar furante, sorriu jogando na lama, devolvendo num só golpe toda a minha falsa piedade, falou-me num tom seco e rápido: Os ratos vivem do lixo, os cabras vivem do luxo. São varias as possibilidades para sobreviver na extremidade. Alguns acreditam no trabalho, outros no crime, outros na terrível arte de pedir.

Minha teleobjetiva estava a um passo do close e sua face trazia uma estranha possibilidade de fotografia de arte que poderia me render alguns dólares e este pensamento cínico, produtivo e pragmático me agradou tão cruelmente que vi os olhos de Clarice brilhantes diante da possibilidade latente do lucro fácil.

Vira-Latas pareceu ler meu intuito, rapidamente se afastou da lente, cobriu o rosto com uma máscara vulgar, se perdeu na pilha de barracos das ruelas escuras daquele cenário de filme futurista. Só agora compreendia o cenário desses filmes, suas noites de terror, seus dias cinzentos, seus habitantes maltrapilhos e feridentos.

A nação apodrecia na extremidade, este apodrecer era como a ferrugem que avançava da periferia para o centro, provocado pela lama fétida que o centro derramava por toda a nação.

Recolhi minha piedade farisaica ainda jogada no chão, abri o peito lentamente e guardei tudo lá dentro, revólver, piedade, coração e até o The end. fim da matéria.

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